Ensaios sobre Cinema, Filosofia e Educação

Notas pessoais sobre cinema, filosofia e educação

quarta-feira, julho 31, 2013

Universidade Monstros e o antigo embate “teoria vs prática”


Os amigos Wazowski e Sullivan são a personificação das duas faces que caracterizam o modo como lidamos com o conhecimento.

Por Cristiano de Jesus

Universidade Monstros, a mais nova animação da Pixar Animation Studios, causou-me agradável surpresa ao dramatizar um antiquíssimo embate: o que é mais importante, a teoria ou a prática?

Na história, Mike Wazowski é o intelectual, conhece todos os estudos e técnicas da arte do susto, possui alto desempenho quando tem que lidar com princípios e fundamentos. Está sempre carregando livros e cadernos de anotações. Conhece todos os principais autores da sua área e sabe discuti-los muito bem sempre que é arguido.

Por outro lado seu companheiro de quarto, James Sullivan é o operário. Pra ele todo esse blá blá blá interminável de definições, explicações, procedimentos são perda de tempo e material de pouca serventia.

Como não lembrar de Escola de Atenas, afresco de Rafael em que são retratados, no centro da figura, Platão apontando o braço para o alto e, ao seu lado, Aristóteles indicando para baixo. O primeiro faz referência ao conhecimento puro e o segundo ao saber dos sentidos.



O desdobramento não poderia ser melhor. Os dois amigos descobrem que são ineficientes sozinhos. Wazowski sabe tudo sobre os fundamentos mas não consegue assustar nem mesmo uma mosca e Sullivan consegue fazer qualquer um botar o coração pela boca porém sem a orientação de certos princípios se torna estabanado e nem sempre a coisa acaba bem. Mas eles se tornam imbatíveis quando trabalham juntos.

A discussão iniciada por Platão e Aristóteles continua até hoje mas já há uma tendência na superação dos dualismos radicais e dos maniqueísmos. A metafísica, ou o saber puro, raramente é tratado como suficiente assim como é rara a confiança extremada nos sentidos. Um dos primeiros a colocar essa oposição em questão quase dois mil anos depois foi Kant ao considerar que há sim categorias de conhecimento a priori, isto é, que todos nós temos em nossa biologia uma certa condição cognitiva mas por outro lado há competências que somente são desenvolvidas quando estamos em contato com o mundo.

Na filosofia contemporânea a teoria e a lógica não passam de possibilidades, mesmo quando funcionam, são como um jogo de quebra-cabeça faltando peças. Mesmo incompleto é possível ter uma ideia da imagem mas é imprudente assumir qualquer certeza. Seja como for a ação orientada pela reflexão, mantendo a disposição de empenhar correções no curso sempre que necessário, esse talvez seja a maneira mais prudente para lidar com o conhecimento.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

A vida é mais do que a soma de suas partes: comentários sobre o filme “O mundo de Leland”

“O mundo de Leland”, do original “The United States of Leland” foi produzido em 2003 e dirigido por Matthew Ryan Hoge, um diretor pouco conhecido. Possui apenas dois trabalhos em seu currículo: além do filme aqui em questão, dirigiu também em 1999, “The Storage” que nem mesmo chegou ao Brasil.

A história contada, além de não despertar muito a atenção, transmite uma idéia completamente diferente daquela que fica depois que vemos o filme.

Leland, um rapaz de 15 anos, mata um menino deficiente mental. Por isso, é enviado a um internato juvenil. Lá ele conhece Pearl, um professor que sonha ser escritor e vê na história do rapaz um certo potencial para se tornar o enredo de uma obra de ficção.

Por essa descrição, a história parece simples e banal, algo como um drama psicológico da mesma linha de “O gênio indomável”, ou alguma coisa parecida.

Entretanto, se eu tivesse que descrever esse filme em uma única palavra, eu diria: Surpreendente! Justamente porque me espantou a profundidade dada ao tema, e porque, na minha leitura, é possível identificar na história traços das idéias apresentadas pela filosofia existencialista. Não sei bem se é coincidência, mas consta que Hoge, quando estudava na Horizon High School, teve contato com a obra do escritor e filósofo existencialista Albert Camus.

Sabe-se que a preocupação central do existencialismo, de um modo geral, é a existência, considerando que a existência humana, especificamente, não deve ser deduzida a priori, isto é, não se pode concluir sobre um modo ideal de vida para as pessoas, assim como não é correto considerar uma suposta essência à raça humana que determine a forma e as condições ideais para a vida.

Eu entendo que este é o princípio que serve de espinha dorsal ao filme. Em um certo momento, Leland fala sobre o que fizera, sobre o assassinato do menino que era deficiente mental. Ele diz:

Leland: Eu sei o que eles querem de mim. Querem um motivo. Alguma coisa para amarrar com um lacinho e enterrar no quintal. Enterrar tão fundo como se nunca tivesse acontecido. Eles querem que eu diga que me arrependo. Que foi culpa da minha mãe. Quem sabe do meu pai. Ou que aconteceu por causa da TV. Ou de um filme. Ou de uma porcaria qualquer. Ou então por culpa de uma garota.

É interessante notar aqui o posicionamento existencialista frente a acionalidade que se instaura na sociedade ocidental a partir do século XVIII. Vale dizer que o modo científico de pensar do homem contemporâneo é marcado pela linearidade. Normalmente estabelece-se um certo fim e as ações humanas consistem em persegui-lo. Porém, essas ações são prescritas pela sociedade tal como procedimentos que precisam ser cumpridos para que tal fim seja possível. Assemelha-se ao processo científico de dominação da natureza através da construção de ferramentas que permitem ao homem superar suas limitações naturais. O sucesso de tal empreitada depende do cumprimento religioso do método.

É sobre isso que consiste a estranheza de Leland observando que nesse mundo tudo precisa ter uma explicação, uma causa, pois se o comportamento é prescrito, se o objetivo é sempre um fim encerrado em si mesmo, é natural que haja um processo que leve a tal conseqüência. Nessa lógica, a razão das coisas é compreendida a partir de sua desconstrução analítica, ou seja, o significado das coisas é a soma de suas partes.

Entretanto, uma coisa é o processo de construção de uma ponte, por exemplo, e outra coisa totalmente diferente é a que consiste as relações humanas. Um engenheiro que venha negligenciar as leis da física e decida manejar o concreto e o aço do jeito que bem agrade seus instintos, está condenando sua obra a destruição e com ela talvez muitas vidas humanas. Nesse caso, o cumprimento rigoroso de parâmetros mecânicos e das regras técnicas não podem estar sujeitas a escolhas subjetivas. Trata-se de um imperativo, de uma necessidade.
Porém, o grande problema é que a racionalidade científica extrapola os limites ao qual foi destinada. Logo na infância, cada indivíduo já recebe uma carga de lições morais, uma lista do que pode e do que não pode praticar. Passa a fazer parte de uma comunidade religiosa e com isso recebe mais um pacote de atribuições comportamentais. Com o tempo, pautado por determinações econômicas, também é incitado a desenvolver aspirações bem específicas quanto ao seu futuro e com isso passa a ver unicamente nos estudos intelectuais o caminho para a obtenção do seu sustento material. Com isso, parece que a vida já é dada no momento do nascimento. Ao indivíduo cabe apenas executá-la.

Em sua obra “O Mito de Sísifo”, Camus faz uma interessante metáfora sobre a existência humana. Ele diz o seguinte:

Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até o cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

[…] É o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos Infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.


Sísifo, portanto, é condenado a levar uma pedra até o cume de um monte donde ela descerá rolando até a planície. O condenado deve então descer o monte e novamente levar a rocha até o alto que por sua vez novamente virá a baixo. Seu destino é realizar esse trabalho inútil e absurdo por toda a eternidade.
Camus vê em Sísifo o homem contemporâneo que vive no absurdo, fazendo um trabalho inútil. O tipo de civilização ao qual cultua e está amarrado o homem contemporâneo incita o pensamento isento de bifurcações e sinuosidades. Tudo precisa ser exato, previsível, seguro, de resultado claro e certo. O utilitarismo das ações que resulta desse modo de vida favorece a atividade econômica desse mundo exigindo o cumprimento de regras que oprime e leva cada indivíduo a exaustão frente as exigências apresentadas. Com o avanço da tecnologia não seria necessário que se trabalhasse tanto. Mas o jogo econômico exige que se trabalhe o máximo possível para que as pessoas possam comprar cada vez mais para então fazer aumentar a demanda, e aumentando a demanda, mais empregos e mais trabalho são necessários, e assim ocorre indefinidamente a ciranda financeira.

Em um tom mais populesco, o homem contemporâneo presta-se ao papel de cão que corre atrás da própria cauda. Leland percebe isso e durante todo o filme aponta as contradições no comportamento das pessoas que denunciam o absurdo, a falta de sentido de tal modo de existência. Há uma sequência de cenas em que dois personagens comentam sobre Albert Fitzgerald, escritor famoso, pai de Leland:

A: Qual o problema de Fizgerald?
B: Vejamos, ele é alcoólatra, misógino, …
A: Ele sabe escrever.
B: Ele é desprezível.
A: Desprezível? Ele é um desgraçado, e daí? Não se julga um escritor pela sua vida mas pelo seu trabalho. O padrão moral é diferente nesse caso.

A visão científica do mundo não permite a visão de um todo integrado, mas apenas os fins e a maneira para alcançar esses fins. A estratificação das funções é tanta que elas acabam perdendo a ligação com um sentido maior, pois a razão de existirem é puramente instrumental, para alcançar um certo fim. Então há atividades para todas as coisas e não necessariamente estão ligadas umas as outras. As ações que visam os negócios, por exemplo, não precisam ser morais, porque não visam a moralidade, mas sim a transação mercantil.
Se o objetivo é a moralidade, pra isso existem as religiões, as fantasias das fábulas, narrativas, ficções românticas literárias, cinematográficas, etc.
Ele também mostra como esse modo vazio de viver leva à superficialidade do indivíduo, à mais pura imbecilidade e mediocridade. Em um certo momento, Fitzgerald é reconhecido, mas a pessoa acredita que ele é um ator, provavelmente porque o viu na TV em algum programa de entrevistas. A fonte de conhecimento do homem contemporâneo, se é que se possa chamar isso de “conhecimento”, é a TV, Internet, no máximo as manchetes de jornais. Aí está um dos motivos da idiotização profunda a qual submerge a humanidade. É interessante a resposta que Fitzgerald dá a pessoa que o indaga:

Pessoa: Você não é ator?
Fitzgerald: Todos nós somos!


Essa também é uma condição de vida no mundo contemporâneo. É necessário vestir máscaras e estas existem de todos os tipos, máscara de estudante, de profissional, de religioso, marido, esposa, filho. Em um mundo estratificado cujas funções não possuem ligação entre elas, é necessário o uso de máscaras que são mais ou menos apropriadas conforme as circunstâncias. Todos são atores!

O filme mostra isso através do comportamento dúbio do professor que mantém um caso amoroso secreto com uma colega de trabalho mesmo sendo comprometido com outra pessoa. Conforme Leland questiona o seu comportamento, o professor revela a imensa fragilidade das convicções do homem dilacerado, especialista, do mundo contemporâneo. Veja que diálogo interessante:

Professor: Eu sou de carne e osso cara!
Leland: É engraçado como as pessoas dizem isso depois que fazem alguma coisa ruim. Você não ouve alguém dizer "eu sou de carne e osso" depois de salvar uma criança de um prédio em chamas.

É interessante como tudo tem que ter um motivo e esse motivo sempre deve ser apropriado ao mundo fantasioso em que as pessoas vivem. Quando fazem alguma coisa ruim, é porque as pessoas são de carne e osso, quando fazem algo nobre, é porque serviram de instrumento a uma força sobrenatural ou porque estão acima da condição natural humana, rumo a condição angelical. Nesse mesmo sentido, ele afirma:

Leland: A última vez que eu chorei foi no enterro da minha avó. Foi mais uma coisa que me marcou. Eu lembro de um outro menino, um primo meu. Sentado lá, bem comportado, com as mãos dobradas sobre o colo. Eu achei que era pra a gente ficar daquele jeito, eu não queria que ele me visse chorando. Mas as lágrimas rolaram mesmo assim. Foi aí que eu descobri que as lágrimas não fazem um morto voltar a viver. E aprendi mais uma coisa sobre as lágrimas. Que elas não fazem alguém que não te ama mais voltar a te amar. É a mesma coisa com as orações. Eu queria saber quantas vidas são desperdiçadas chorando e rezando para “deus”. Na minha opinião o “diabo” faz mais sentido que “deus”. Pelo menos eu entendo porque as pessoas querem ele por perto. É bom ter alguém para culpar das coisas ruins.

Leland mostra em várias partes do filme o comportamento inexplicável, como ocorre meramente por convenções e como a busca obsessiva por um motivo para todas as coisas, por uma causa, cria imagens como “deus”, “diabo”. Ele diz:

Leland: Vai ver “deus” existe porque as pessoas se assustam com as maldades que fazem. Elas acham que “deus” e o “diabo” estão sempre disputando o jogo de cabo de guerra entre eles. E elas nunca sabem de qual lado vão terminar. A idéia do cabo de guerra explica porque mesmo que as pessoas tentem fazer alguma coisa boa acaba não dando certo.

Leland mais uma vez mostra a falta de sentido dessa existência a qual o homem se submete. Ao mesmo passo que ele serve a um “deus”, seu comportamento não reflete tal moralidade. Veja como ele narra algo que lhe ocorrera quando criança e viajava sozinho em Nova Iorque:

Leland: Mas chegando lá eu não arrumava um hotel. Ninguém queria me dar um quarto. Ficavam preocupados em dar acomodação para um garoto. Mas parecia que não se incomodavam de mandar um garoto pra rua sem ter um lugar pra ficar.

Esse apontamento ocorre também quando ele faz um comentário sobre os terremotos:

Leland: Você sabe o que é engraçado nos terremotos? Depois de um terremoto você vê umas pessoas tirando outras dos escombros e abraçando uns aos outros porque vêm os sapados de uma menina na rua e não vêm nenhuma menina por perto. E aí alguns dias depois esquecem tudo isso.
Professor: Mesmo assim isso mostra que existe bondade nas pessoas.
Leland: Pelo menos durante os terremotos!


Veja como Leland mostra o quanto a vida é absurda, o quão ilógica ela é. Como as coisas não fazem nenhum sentido! Como há incoerência por toda parte! Veja isso em mais esse diálogo entre ele e sua namorada:

Leland: Eu costumava roubar um doce ou brigar com minha mãe. Brincava sozinho, esse tipo de coisa. E então eu ficava com uma sensação ruim. Ainda me lembro como ela ficava de cara feia olhando pra mim.
Becky: Eu não acho que ficam de cara feia. Eu acho que elas tomam conta da gente. Tomam conta de nós e cuidam para que nada de ruim nos aconteça. Cuidam para que dê tudo certo.
Leland: Então por que quase nada dá certo na maioria das vezes?

Leland nunca pensa de forma lógica, nunca se satisfaz com sentenças exatas e vazias de significado. Veja como são interessantes algumas de suas falas:

Professor: Aconteceu alguma coisa [em Nova Iorque]?
Leland: É uma grande cidade, sempre acontece alguma coisa em Nova Iorque.

Garoto: Em Veneza não há nenhuma rua, não é? Só água e esgoto.
Professor: Canais e esgoto! Sabe? Eles não permitem carros na ilha.
Leland: Lá dá para ouvir os passos.
Professor: Como é que é?
Leland: Já que não permitem carros, quando você anda dá para ouvir os passos.

Becky: Quero que você diga que vai estar sempre aí.
Leland: Sei lá! As vezes eu estou em entro lugar.
Becky: Só me diga que tudo vai ficar bem.
Leland: Mas eu não posso garantir que tudo vai ficar bem.
Becky: Eu sei mas as vezes você diz coisas que não são exatamente verdade mas você diz assim mesmo porque você quer que seja verdade então isso basta.

É espantoso como duas formas diferentes de ver o mundo ficam tão evidentes quando colocadas lado a lado como foi feito nesse filme. No entanto, tal modo de ser traz problemas para Leland. Isso o torna uma pessoa incompreensível para as pessoas acostumadas sempre a agir em correspondência com aquilo que é aparente. Um diálogo entre ele e sua namorada mostra isso:

Becky: Eu estou confusa. Eu não sou como você. Você diz que estou te magoando mas parece que não faz diferença.
Leland: Faz diferença!
Becky: Mostra pra mim!
Leland: Mostrar como? Gritar com você? Bater em você? É o jeito de eu mostrar pra você que faz diferença?

O mundo se torna complicado para uma pessoa assim, que não age conforme o que se considera normal e conveniente. Leland se considera livre para agir como bem entende porque acredita que não são as convencionalidades o que é importante mas sim as coisas em si mesmas que importam. Nesse caso ele não vê porque tem que demonstrar seu amor pela sua namorada como todos fazem. Ele tem seu jeito de próprio de amar.

Se esse filme não possui inspiração de Camus, mais impressionante ainda é quantidade de coincidências. A obra “O Estrangeiro” está repleto de situações semelhantes das que estão no filme.

Meursault, o personagem principal, sente-se como um estrangeiro no mundo. Ele fica impressionado com a falta de sentido das coisas e do modo como as pessoas se apegam a valores e conveniências. Ele diz:

Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe, corre o risco de ser sentenciado à morte.

Pensei que passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho, e que, afinal, nada mudara.

Aqui se encontra o mesmo sentimento de estranheza que Leland possui com relação a forma de demonstrar o amor, a dor, o medo. Leland diz que coisas como choro, orações, nada disso faz uma pessoa morta voltar a vida da mesmo forma que dizer “eu te amo” não faz diferença alguma para um relacionamento entre namorados. Enquanto que as pessoas costumam dizer que o amor é uma coisa do coração, Leland diz que o amor é uma coisa da língua, ou seja, não passa de uma palavra.

Mas voltemos a comparação da história do filme com Camus. A vida de Meursault parece ainda mais absurda quando, aparentemente sem explicação, ele mata um árabe e é condenado a morte. No momento em que estava sendo julgado ele ouve a sirene do vendedor de sorvetes que estava do lado de fora do prédio. Nesse momento ele se lembra da sua vida e tudo se torna ainda mais confuso e sem sentido:

No fim, lembro-me apenas de que, na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto meu advogado continuava a falar, eu ouvia o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes. Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie. Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me, então, à garganta e só tive uma pressa: acabar com isto e voltar à minha cela, para dormir. Mal ouvi o advogado clamar, para concluir, que os jurados não gostariam certamente de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario; e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos castigos, eu já arrastava comigo.

Portanto, considerando sua vida absurda e sem sentido, Meursault posta-se a recordar os momentos que lhe foram prazerosos. Camus diz:

Todo o problema, ainda uma vez, estava em matar o tempo. Acabei por não me entediar mais, a partir do instante em que aprendi a recordar.

Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar 100 anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar.


Leland diz coisas bastante parecidas, inclusive também fala algo sobre sorvetes. Veja:

Leland: Quando digo que não me lembro daquele dia não estou mentindo. Antes estivesse mas não estou. Às vezes as coisas mais importantes desaparecem. E desaparece de tal forma como se nunca tivesse estado lá. É estranho as coisas que ficam na nossa cabeça. Mas eu vou te descrever de traz pra frente aquele dia em que eu tinha 5 anos e meu pai comprou um sorvete de casquinha vagabundo. Eu sei dizer até o sabor do sorvete. Ele era rosa com gosto de chiclete. E até me lembro da garota que me serviu. O cabelo dela era vermelho como fogo. Disso eu me lembro como se tivesse acabado de acontecer. Mas não me lembro do outro dia. Pelo menos não do jeito que eles insistem comigo. Eu me lembro que foi o primeiro dia quente da primavera. Eu me lembro da sensação do sol no meu pescoço. Mas só isso.

A existência é tão absurda que são momentos efêmeros como esses que a faz ser suportável. Enquanto Becky tenta arrancar certa lógica de Leland, ele diz que acha bom o cheiro de morango de seus cabelos. Apenas sensações simples como essas importam. Coisas como lógica, teorias, são criadas pelo homem para o homem. O dia que não existir mais humanidade não existirá mais nada disso.
O grande problema é que, a consciência, aquilo que representa a superioridade humana em relação a todo o resto, passa a ser o seu grilhão existencial, porque consciente da sua vida inútil, absurda e sem sentido, o homem é tomado pela angústia. Paradoxalmente, a descida de Sísifo à planície para novamente pegar a pedra é mais dolorosa pra ele do que o próprio esforço físico necessário para carregá-la novamente para o cume do monte, porque é na descida que Sísifo reflete sobre sua condição. Veja o que diz Camus:

É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo. Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.

Por isso, para os existencialistas, o fato de ter consciência, faz do homem um ser livre. “Eu estou condenado a ser livre” diz Sartre. Isso implica que o homem é responsável por tudo o que faz. Mas o mundo contemporâneo oblitera essa realidade pois a especialização das funções e a forma dilacerada de ver o mundo torna turva a visão das consequências de cada ato. O indivíduo não se preocupa o quando sua atividade agride o meio ambiente e as pessoas, o quanto acentua a desigualdade social, etc. Sua obrigação não é essa.

Sartre diz que agir desse modo é agir de má fé, porque o homem é livre mas muitas vezes finge não ser livre para fugir da angústia provocada pela liberdade. Isso é muito nítido pra mim no filme em um momento em que Leland conversa com seu professor:

Leland: Como você vê o mundo Pearl?
Pearl: Cheio de possibilidades, eu acho que há muitas coisa boas, coisas positivas. E você?
Leland: Eu acho que tem duas formas de ver. Uma é como você disse, com a vida correndo bem. E quem sabe com coisas erradas que não dá pra ver.
Pearl: Qual é a outra forma?
Leland: Quando você enxerga a verdade. Ela está sempre aí. Mesmo quando tudo parece bem. E as crianças brincando. E os casais se beijando. Ela existe em tudo isso mas as pessoas em geral não enxergam.
Pearl: O que é ela? E por que não enxergam?
Leland: Como as coisas simplesmente passam. Como todo mundo que morre por dentro. A tristeza que todos sentem.

Mas Leland anda de mãos dadas com a angústia. Ele não vê sentido em nada e ainda mais é incompreendido por não manifestar as emoções como todos manifestam e não possuir o pensamento utilitário que todos possuem. Ele diz o seguinte:

Leland: Isso me cobre os olhos. É só o que eu enxergo. Digamos que as crianças estão jogando beisebol. Eu só vejo que não deixam um deles jogar porque ele conta piadas. E ninguém acha engraçado. Ou um casal apaixonado se beijando eu só vejo que eles vão ser um daqueles casais triste um dia com um enganando o outro nem olhando nos olhos. Eu sinto isso, sinto toda a tristeza deles. Sinto mais ainda do que aquele casal velho e triste e o garoto jamais vão sentir.

Nessa altura do filme, o pensamento de Leland vai se tornando mais claro para nós e o motivo que o levou a matar o menino com deficiência mental começa aparecer. Ele começa achar respostas para as coisas e com isso a ordem começa a se desenhar no caos da sua mente. Ele diz o seguinte:

Leland: A pior parte é saber que existe bondade nas pessoas. Que em geral fica enterrado bem no fundo. Vai ver temos um “deus” não porque temos medo das coisas ruins. Vai ver porque temos medo das coisas boas. Porque se “deus” não existe significa que é dentro de nós que poderíamos ser bons o tempo todo se quiséssemos. E então quando fazemos coisas ruins é porque queremos ou porque precisamos. Ou porque precisamos das coisas ruins para lembrarmos das coisa boas para começo de conversa.

Aí está a liberdade existencialista. Para Leland deveríamos ser bons porque podemos ser bons e porque decidimos ser bons, não devido a existência de um certo “deus” moral, assim como podemos também decidir não fazer coisas ruins sem ficar tentando se isentar. Nós podemos, por exemplo, ter a postura de não comprar um calçado se sabemos que ele foi confeccionado por crianças no sudeste asiático, porque se o fizermos estamos contribuindo para a desgraça e o martírio desses meninos e meninas.

Sobre o que fizera, Leland diz:

Leland: E se não der pra juntar as coisas?

Leland: Eu sei o que você quer de mim. Saber o por quê. Mas vai ver não existe, só foi alguma coisa que aconteceu.

No ápice da sua enorme angústia de ver o sofrimento sisifiano nas pessoas, ele observa Harry Pollard, o menino deficiente mental. Veja como é desconcertante o que ele diz:

Leland: As palavras que ensinavam pra ele eram coisas para se evitar. Não ensinavam palavras como morango ou beijo. Dava pra ver que ele gostava da moça que trabalhava lá. Ela sempre sorria pra ele. Comecei achar que ele sabia. Ele sabia que ninguém olhava pra ele como uma criança normal. As pessoas ou riam dele ou tinham pena. Não tinha nada que ele pudesse fazer. Ele estava aprisionado.

Ele gostava do menino, mas é importante lembrar que Leland é absolutamente livre, ele possui a liberdade existencialista. Sua forma de amar não é convencional. No caso do menino, por ama-lo e vê-lo em sua condição, Leland o liberta, mas a morte é a única forma de libertação para Harry pois ele é deficiente mental.

Até mesmo por coerência, esse filme não é linear, as cenas não navegam tranquilamente em uma linha do tempo. Passado, presente e futuro se entrelaçam de forma imprevisível. O menino morre mas na cena final ele ainda está vivo, e é uma cena simplesmente extraordinária.

Harry costumava voltar da escola pedalando sua bicicleta por uma calçada que cortava um grande jardim. Aquele era o seu caminho pra casa. Mas um dia aconteceu de um grande galho de árvore cair nessa calçada bloqueando a passagem. O menino, impedido de fazer o que todos os dias fazia religiosamente, sem saber o que fazer, ficou tentando, sem sucesso, passar por entre os galhos se machucando e rasgando sua roupa. Leland, que estava por perto, retirou o menino dali, abraçou-o carinhosamente, e disse: “Calma, está tudo bem. Tudo vai ficar bem. Eu prometo.”

Pra mim ficou muito claro que Harry sou eu, você, todos nós que tendo a mente entorpecida por necessidades infundadas e imersos em profunda tristeza pelo absurdo da vida, não sabemos traçar nosso próprio caminho tendo sempre que ser conduzidos para o destino que a sociedade nos manda. Quando algo inesperado surge, como por exemplo a filosofia profunda de Camus e Sartre, bloqueando a passagem, ficamos nos debatendo desnorteados sem saber o que fazer.

Para quem ainda tem dúvida da influência de Camus nesse filme, deve ler esse importante trecho:

Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado.

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.


Por que julgar a verdade como necessária? Talvez a própria condição para a vida seja a ausência da verdade. A vida é mais do que a soma de suas partes, mas essa idéia é insuportável.

quarta-feira, julho 30, 2008

A arte de criticar a arte


Cozinha / Kitchen, upload feito originalmente por Cristiano de Jesus.

"Imagine [...] que estamos olhando um jardim através do vidro de uma janela. Nossos olhos se acomodarão de maneira que o raio da visão penetre o vidro, sem deter-se nele, e vá fixar-se nas folhas e folhagens. Como a meta da visão é o jardim e até ele é lançado o raio visual, não veremos o vidro, nosso olhar passará através dele, sem percebê-lo. Quanto mais puro seja o vidro, menos o veremos. Porém, logo fazendo um esforço, podemos prescindir do jardim e, retraindo o raio ocular, detê-lo no vidro. Então o jardim desaparece aos nossos olhos e dele só vemos uma massa de cores confusas que parece grudada no vidro. Portanto, ver o jardim e ver o vidro da janela são duas operações incompatíveis: uma exclui a outra e requerem acomodações oculares diferentes [...] Pois bem: a maioria das pessoas é incapaz de acomodar sua atenção ao vidro e transparência que é a obra de arte; em vez disso, passa através dela sem fixar-se e vai revolver-se apaixonadamente na realidade humana à qual a obra alude". Ortega y Gasset (1883-1955)


O ato de interpretar um obra de arte, seja ela de qualquer natureza, assume diferentes formas ao longo da história. Entretanto, isso não impede que ao longo do tempo se acumule teorias sobre estética e filosofia da arte que possam orientar os observadores.

Entretanto, não quero entrar muito em detalhes sobre essas teorias, embora sejam muito interessantes. Eu apenas chamo a atenção para esse tema relativo aos dias atuais.

Eu percebo que, em qualquer momento em que se exija a interpretação, seja de um texto, de uma fotografia, de uma filme, etc, a atitude predominante por parte de quem interpreta, seja entre um observador comum ou mesmo entre críticos de jornais e revistas, é a de um juiz que, a partir de certos métodos e critérios, determina o veredito: a obra é ruim, regular ou boa.

Essa postura, ao meu ver, praticamente transforma o ato de interpretar numa ciência em que são equacionados elementos sobre os quais são submetidas as obras e, a partir disso, pesando seus acertos e tropeços, obtém-se seu valor.

Pois bem, isso dificilmente causa alguma estranheza visto que essa postura, no meu entendimento, possui raízes bem definidas na época em que vivemos. Trata-se de uma atitude própria do homem contemporâneo, pós-moderno.

Explico-me. Nós vivemos a era mais científica e racionalista de todos os tempos. Principalmente após a Revolução Industrial, o comportamento humano se tornou especializado e metódico. Isso traz benefícios, garante a sobrevivência e coisas como conforto, o progresso tecnológico, e outros.

Mas esse comportamento excessivamente procedimental também provoca outros fenômenos. As pessoas passam a ter dificuldades imensas de mudar uma certa realidade ou mesmo de viver de forma diferente a do padrão exigido pelo sistema racionalizado. Primeiro porque ninguém tem o domínio do todo mas apenas da atividade que realiza, que sozinha não tem sentido algum, segundo porque a necessidade material uma hora ou outra vai clamar por seu suprimento, isto é, ou o indivíduo se adequa ou vai pagar o preço com privações de todos os tipos por se comportar como um extraterrestre.

Um exemplo bom para ilustrar essa reflexão é pensar um pouco sobre o que é natural e o que é construído pelo ser humano. Uma montanha ou um pico é natural, é dado pela natureza. Se pretendemos escalá-lo, ou usamos os equipamentos e procedimentos necessários ou enfrentamos sérias dificuldades podendo mesmo pagar a ousadia com a vida.

Agora se pensarmos em sistemas de governo, sistemas econômicos, edifícios, máquinas, veículos, tudo isso são criações humanas e, portanto, podem ser transformados, repensados.

E o grande problema, por motivos que eu já mencionei, é que a postura mais conveniente e portanto predominante é a de encarar as criações humanas como se fossem naturais, como se fossem dadas, cabendo a nós apenas operacionalizar a realidade.

Ora, se isso fosse verdade não haveria o crime organizado. Veja, por exemplo, o filme "O Poderoso Chefão". A máfia praticamente cria um mundo paralelo com um outro governo, com outras regras, como outras leis, etc. Assim sendo, eu reflito se algo significantemente bom pode ser criado a partir de uma mera adaptação. Não apenas é possível mas muito é necessário também pensar em outras formas de civilização.

De qualquer modo, esse aspecto de nossa época interfere e muito no ato de interpretar. Eu lembro bem do meu tempo em que eu estudava no ensino médio e pré-vestibular. Eu sempre ia muito mal nas avaliações de redação. A professora sempre dizia que eu escrevia muito bem mas que eu fugia muito do assunto. Pelo o que eu percebo, esse "problema" me persegue até hoje. É raro alguém que leia os meus textos não diga algo parecido pra mim.

Mas o motivo da minha insistência, mesmo pagando com notas baixas nas avaliações, é o meu incômodo com a forma como sou interpretado. Eu vejo que essas professoras de redação não procuram pensar junto comigo, junto com o meu texto. Elas nunca procuram entender o processo de gênese do raciocínio. Simplesmente tentam enquadra-lo num esquema de interpretação. Se o texto segue bem as regras a nota é boa caso contrário, é lixo. A interpretação é metodizada é o método ganha mais importância que o próprio autor.

Não pense que isso acontece apenas com pobres mortais como eu.

Como eu gosto muito de cinema e fotografia, eu leio sempre críticas de obras desse tipo. Eu vou ilustrar a minha reflexão comentando uma crítica de cinema que eu li e que pra mim é exemplar.

O filme criticado era "Diamantes de Sangue", dirigido por Edward Zwick. O crítico de cinema classificou o filme como "péssimo" pois o considerava oportunista fazendo um espetáculo de ação usando como pano de fundo uma tragédia humana que envolve a exploração criminosa de diamantes em alguns países da África.

De fato, o filme não é nenhuma obra de arte e o crítico tem sua parcela de razão em sua observação. Entretanto, dias depois que eu li essa crítica eu li em uma revista especializada uma entrevista com o diretor e os produtores do filme. Os produtores disseram que o objetivo deles não era outro senão o entretenimento, ou seja, eles investiram uma grana e queriam o retorno nas bilheterias. Simples assim. No entanto, eles complementaram que todo e qualquer tentativa de fazer o filme ganhar relevância social veio do diretor.

Bem, eu vejo que dado as enormes restrições de ação criativa que possuía o diretor, o filme até que cumpriu o seu papel no sentido de alerta para um problema real.

A própria mania de dar uma nota para a obra é uma obscenidade ao meu ver. Eu entendo que não há o que gostar ou não gostar. Há um ponto de vista o qual se pode concordar ou não. No máximo se poderia questionar algo sobre a estrutura epistemológica da obra, ma isso trata de algo que não interessa muita gente em uma época em que se espera soluções prontas e fórmulas fáceis para tudo.

Eu vejo, portanto, que esse é um exemplo daquilo que ocorre quando o observador de uma obra qualquer não respeita o autor, quando não se preocupa em pensar junto com o autor deixando um pouco de lado seus interesses pessoais.

Eu entendo que o filósofo espanhol Ortefa y Gasset sintetiza bem toda essa discussão com sua metáfora do jardim.

Sobre a fotografia em questão, eu creio muito que se alguém fosse chamado a se manifestar sobre ela, diria algo como: "ora, o que eu tenho a ver com panelas e apetrechos de cozinha?" e não comentaria nada além da técnica fotográfica e de preferências pessoais. Ou seja, o observado se ateve exclusivamente ao o que ele vê de imediato, ao jardim de Ortega y Gasset.

Entretanto, permita-me comentar um pouco sobre essa foto e tentar exclerece-lo, ainda parafraseando Ortega y Gasset, sobre o vidro, que é a arte, ou pretensa arte, propriamente dita.

É importante dizer em primeiro lugar que sou fotógrafo amador. Eu busco o aperfeiçoamento técnico mas tenho minhas limitações e dificuldades como qualquer amador.

A minha prioridade é sempre usar a fotografia para contar uma história através da imagem e tento fazer isso sempre através de metáforas.

Eu quis refletir, através dessa fotografia, por exemplo, a questão da necessidade. A propaganda, que é uma linguagem comum em nossa época, vende o progresso tecnológico e a modernização como uma necessidade imprescindível. Com isso, o grande desejo de muitas famílias é ter uma cozinha planejada e equipada com os mais sofisticados móveis, eletrodomésticos e utensílios.

Bem, a cozinha da foto é real, não é um cenário construído em estúdio. Eu quis enfatizar isso ainda mais utilizando luz natural. Eu poderia usar um flash para alcançar uma maior definição e textura dos objetos, mas o meu objetivo, na verdade, era buscar o maior realismo possível e mostrar que a propaganda é falsa. Essa cozinha proporciona perfeita condição de vida para aqueles que a utilizam, mesmo não havendo parafernálias eletrônica e mesmo não obedecendo a estética convencional almejada pelas massas.

A cozinha em questão é da casa de minha avó, onde eu nasci e morei até os meus sete anos. Hoje eu tenho 34 anos e quis registrar um pouco da personalidade dos meus avós paternos. Ela sempre foi assim desde quando eu era criança. Portanto ela provoca em mim reminiscências emocionais que são praticamente impossíveis de serem verbalizadas, ainda mais pelo fato da caneca ter sido de um dos meus maiores ídolos, meu avô já falecido.

É impressionante como as coisas da casa da minha avó resiste ao tempo e proporciona a ela uma vida digna. Mesmo após o meu avô ter falecido ela manteve a caneca no mesmo lugar onde ele deixava. Imagino o que isso deve representar pra ela.

Tudo isso também me lembra do filme "Cinema Paradiso". O filme discute sobre a avalanche destruidora da "modernização" e do "progresso" que não deixa nada em pé daquilo que é histórico. Para que serve o simbolismo histórico para o avanço tecnológico? Para progredir a ciência precisa manter os olhos no futuro e não no passado! Essa é a premissa fundamental da nossa atual sociedade.

Mas veja como essa lógica é devastadora para as emoções e para a criatividade. Assim como no filme em que o personagem Totó volta para a sua cidade natal e vê o cinema que freqüentava destruído, as pessoas que conhecia envelhecidas, os mais jovens sempre centrados em si mesmos, andando pelas ruas ziguezagueando entre os carros, eu também volto sempre a minha cidade natal e tenho a mesma sensação. Vejo as antigas ruas de paralelepípedo asfaltadas, as pessoas totalmente modificadas pela ação impiedosa do tempo, os lugares que eu freqüentava, que milagrosamente ainda existem, tomados pela ferrugem, pela poeira, pela destruição.

Apenas a casa onde eu vivi a minha saudosa infância está ali, intacta. Materialmente eu não sei até quando ela ainda persistirá. Na minha fotografia ela permanecerá ainda por algum tempo.

domingo, janeiro 14, 2007

Comentários sobre o filme "V de Vingança"

“V de Vingança” (V for Vendetta) foi lançado em 2005 nos Estados Unidos e possui como roteiristas Andy Wachowski e Larry Wachowski, os mesmos de Matrix. O roteiro é inspirado na série em quadrinhos homônima de Alan Moore. A direção é de James McTeigue que já trabalhou como assistente de direção ou segundo diretor em vários projetos como na própria trilogia Matrix e também em Guerra nas Estrelas (Ataque dos Clones).

O tema gira em torno de vingança e medo. O primeiro constitui o corpo da obra e o segundo, a alma. E é por ter alma que este filme possui qualidade. Alguns podem não gostar dele mas classificá-lo como ruim é atestar a falta de qualquer conhecimento sobre cinema e artes em geral.

O que faz pinturas de Da Vinci, Michelangelo, Salvador Dalí e outros serem diferentes é justamente por terem alma. Ao criá-las esses artistas colocavam nas telas amor, paixão, ódio, imprimiam seus sentimentos e visões de mundo carregados de significados. Além disso, cada obra era única. Só existe uma única “Mona Lisa”, uma única Capela Sistina, um único “Dom Quixote”.

Nos dias atuais, este conceito de arte ainda persiste mas não é mais a corrente dominante. A lei mandatária da nossa era é a “linha de montagem”, a institucionalização, os padrões, as fórmulas e equações que garantem o retorno necessário para o pagamento das contas e que sustentam os lucros.

É muito comum nos shopping centers a presença de pequenas galerias para venda de quadros. Até parece ser mais um milagre dos tempos modernos - o acesso das massas a arte. Uma grande contribuição do nosso tempo a humanidade? Conversa fiada! Se analisarmos com mais cuidado podemos constatar que se trata de uma imagem chapada, impressa em papel sintético, por uma máquina e através de uma matriz. Como máquinas não possuem sentimentos, eu encaro esse objeto como uma farsa, uma obra sem alma.

Algo parecido acontece também no cinema. Hollywood é o mais claro exemplo de institucionalização da arte. O objetivo dos produtores incluem as contas pagas e o lucro garantido. Pra isso existem os clichês e os chavões hollydianos tais como Mel Gibson e Julia Roberts que garantem a bilheteria. Além disso, a tecnologia também dá uma mãozinha. Há inúmero programas de computadores que até mesmo criam os personagens, permitem cruzar perfis, situações, etc. Trata-se mesmo de algo tal como um linha de montagem que no fim tem-se um produto que será consumido por milhões de pessoas pelo mundo todo. Um produto que muitas vezes não tem alma, ou seja, é simplesmente o resultado de uma fórmula de gerar lucros.

Não é esse o caso de “V de Vingança”. Ele não é simplesmente um produto sem vida, sem significados. Sua história até possui clichês que poderiam levá-lo ao desastre, poderia torná-lo um blefe. Seria fácil escorregar para uma critica ou para uma denúncia como simples artifício para atrair o público. Isso seria muito hipócrita por condenar uma certa situação ao mesmo tempo que se aproveita dela.

A história se ambienta em um momento futuro em que a Inglaterra passa por um regime extremamente autoritário. Um político jovem, promissor e extremamente religioso é membro do partido Conservador, é decidido e não tem consideração nenhuma pelo processo político. Seu partido lança um projeto em nome da segurança nacional para a busca de armas biológicas. No entanto este objetivo é apenas fachada pois com isso não seriam questionados sobre os custos. O verdadeiro sentido do projeto é o poder. Dominação completa e total.

Foi criado então o Centro de Detenção Larkhill (Larkhill Detention Center) onde pessoas eram aprisionadas e submetidas a inúmeras violências e até mesmo serviam como cobaias para a criação de um vírus letal ao mesmo tempo que providenciavam também o medicamento para a cura que ele causaria.

Incentivado pela mídia, o medo de uma gerra biológica se espalha rápido e o partido Conservador é visto como a única saída para detê-la. Ele é então eleito e alcança o poder que tanto almejava.

Já com o vírus em mãos, era o momento de o partido mostrar serviço. Ele foi usado em uma escola, no metrô e numa estação de tratamento de água. Centenas de pessoas morreram nas primeiras semanas. Após a contaminação, uma fábrica de remédios controlada por membros do partido lança no mercado o Viadoxic, um medicamento que neutralizava o vírus. A empresa passou a bater recordes nas bolsas de valores e o povo acreditava ser um milagre de Deus que a teria escolhido para salvar o país.

Alguns extremista oposicionistas, usados como bodes expiatórios, foram julgados e condenados, e um memorial é erguido para canonizar as vítimas.

No entanto, os patifes do governo não contavam que um homem que estava preso em Larkhill tinha sobrevivido. Este assume o codinome “V” e dá início a um trama cuja base é a vingança. Ele “visa varrer esses vermes venais e virulentos da vanguarda do vício que permitem a viciosa e voraz violação da vontade”.

Se o filme tivesse ficado nisso eu mesmo teria-o condenado ao inferno para que queimasse ali junto com Rambo e outros do gênero. Mas Alan Moore deu alma a história e os irmãos Wachowski souberam bem traduzi-la para o telão.

Reflexões sobre o medo

O medo tornou-se a ferramenta fundamental do governo para instaurar um sistema de crueldade, injustiça, intolerância e opressão. As redes de televisão BTN (British Television Network) e Interlink contribuem muito divulgando notícias maquiadas.

As pessoas são fracas, não levam em conta que podem ajudar seu país se agissem de um modo diferente. Mas esta consciência é muito difícil de ser adquirida pois o medo é uma emoção, uma condição natural que provoca em nós a percepção do valor negativo que uma determinada situação tem para as nossas necessidades e interesses. Trata-se de um índice que indica o valor não desejável que uma situação tem para a nossa existência, ou seja, para a nossa vida.

Aristóteles afirma que “o medo é uma dor ou uma agitação produzida pela perspectiva de um mal futuro, que seja capaz de produzir morte ou dor”. Isso implica que nem todos os males são temidos mas apenas aqueles que provocam dor e destruição e também que sejam iminentes. Todos sabemos que vamos morrer um dia mas apenas somos tomados pelo medo quando encaramos a morte frente a frente.

Em “V de Vingança”, mesmo o governo usando da violência em vez do diálogo, eliminando a liberdade de se opor, pensar e falar, a população se via obrigada a se submeter. O chanceler criou uma determinada ordem de coisas que mostrava que a segurança da nação somente seria possível através da total submissão das pessoas as suas determinações. Ele tornou a possibilidade de um ataque com armas biológicas algo iminente e muito próxima da realidade das pessoas.

Hobbes afirma que emoções, como o medo, controlam toda a conduta do homem e, neste mesmo sentido, Descartes afirma que a função natural das emoções é nos incitar a executar ações que servem para conservar o corpo ou para torná-lo mais perfeito. Descartes ainda considera que as emoções não provém da diferença entre os objetos, mas dos diferentes modos pelos quais os objetos nos prejudicam, nos ajudam ou, em geral, têm importância para nós. Kant complementa que as emoções ajudam e sustentam a existência implicando que a utilidade das emoções decorre da função exercida em face da vida.

Heidegger é quem aproxima o tema da angústia a grande discussão sobre o medo. Para este pensador, diferentemente do medo, que sempre existe em relação a algo que está dentro do mundo, que se aproxima ameaçadoramente e que pode ser removido, a angústia só pode ser sentida diante do mundo como tal. Ela não é provocada como ocorre com o medo, por um fato particular, mas apenas é contingente da nossa existência.

Com base nesta premissa, o médico e fisiológico Kurt Goldstein demonstrou que a adaptação de qualquer organismo a um ambiente acontece através do que ele chamou de “reações de catástrofe”. Após vários choques, os eventos catastróficos passam ter um significado de comportamento ao organismo, ou seja, ganham forma emotiva de angústia, que o dará capacidade de agir para conservar sua existência. O que produz o medo é o sentimento de possibilidade de surgimento da angústia.

E é justamente essa fraqueza natural que todos temos que é usada pelo governo inglês criando uma série de problemas para que juntos tenham a função de corromper a razão e afetar o bom senso das pessoas, tornando-as angustiadas por uma ameaça sempre presente, sempre muito próxima, pronta a se concretizar a qualquer momento. O medo então as dominam e as fazem recorrer ao novo alto chanceler Adam Sutler que promete paz e ordem pedindo em troca um consentimento silencioso.

Mas o filme não pára por aí em suas indagações sobre a natureza humana. V inspirou-se em um personagem histórico, um soldado chamado Guy Fawkes. Este fazia parte de um grupo que articulou um plano, chamado de “Conspiração da Pólvora”. Ele fora pego no dia 5 de novembro de 1605 acertando a posição de 36 barris de pólvora no porão do prédio do parlamento inglês. Seu objetivo era fazer voar pelos ares o prédio do Parlamento com praticamente todo o governo britânico de então: o rei, a nobreza e os parlamentares. Até hoje, todos os anos no dia 5 de novembro, pessoas no Reino Unido, Nova Zelândia, África do Sul, Terra Nova e Labrador e São Cristóvão celebram a falha da conspiração, na chamada Noite de Guy Fawkes.

A vingança de V então consiste em fazer o que Fawkes não conseguiu, isto é, destruir o prédio do Parlamento com Big Ben e tudo o mais que ele tem direito. Ele quer, com isso, fazer com que imparcialidade, justiça, liberdade sejam mais que palavras vazias de discurso político, mas sim perspectivas que guiam ações efetivas, palavras recheadas de substância, que oferecem um significado e, para aqueles que ouvem, a enunciação da verdade.

Para V a explosão do prédio significa o mesmo que o prédio em si, ou seja, um símbolo. Através deste ato, o povo se liberta do medo, deixando de precisar de signos, e passa a ter esperança sustentada por uma consciência mais precisa da realidade.

Este desenrolar de acontecimentos é bastante interessante. É Sheler quem aponta a relação entre objeto e medo como uma relação simbólica pois considera que os estados emotivos não têm caráter intencional por si mesmos. Não se referem imediatamente a objetos ou situações. O estado emotivo pode tornar-se um signo do objeto ou da situação. Para Sheler, o valor constitui o objeto próprio da emoção e é considerado uma realidade específica, irredutível às realidades percebidas ou conhecidas de natureza absoluta.

Portanto, como bem afirma V, a explosão de um prédio pode sim mudar o mundo embora não existam certezas de nada mas apenas oportunidades. A oportunidade para V está clara, e é com este ato que ele pretende mudar radicalmente a mente de seus concidadãos, colocando abaixo símbolos, signos, significações que tiram a atenção da população não permitindo-as pensar e agir de forma autônoma.

Max Weber também acreditava que as ações são realizadas a partir de motivações que, de certa forma, oferecem significado ou sentido próprio à conduta humana. A sociedade retratada em “V de Vingança” está presa a uma realidade forjada, a uma significação criada e imposta por um grupo que visava o poder. Essa situação somente será alterada se todas as pessoas, coletivamente, mudarem a forma como enxergam as coisas, algo que é muito, mas muito difícil. Somente um evento muito marcante, de grandes proporções, para provocar uma ruptura de paradigma de tal magnitude.

No dia 11 de setembro, os aviões foram além de atingir duas torres e matar milhares de pessoas. Os arquitetos desta ação conseguiram com isso abalar uma crença já muito enraizada. Os estadunidenses possuem fascinação por edifícios. Os prédios são símbolos de progresso e poderio econômico. Dessa forma, foi destruído também a convicção inabalável de invulnerabilidade.

Terrorismo?

Não são poucas as pessoas que acusam “V de Vingança” como um apologia ao terrorismo. Isso é um completo absurdo, mas já que isto é por demais recorrente vou fazer alguns comentários breves.

Normalmente terrorismo é definido como um de sistema de governar pelo terror e com medidas violentas ou como atos de violência praticados contra um governo, uma classe ou mesmo contra a população anônima, como forma de pressão visando determinado objetivo. Em ambos os casos, trata-se de um modo de impor a vontade por meio da violência e do terror.

O problema é que muitos confundem as coisas e classificam reações a situações insuportáveis como terrorismo. É ledo engano querer impor nossa visão de mundo a todas as culturas. A forma como resolvemos problemas e conflitos podem ser completamente diferentes em outras sociedades. Cada povo reage as pressões conforme podem e conforme ditam seus costumes.

É fato que o sistema econômico atual gera desigualdades de proporções astronômicas não apenas dentro dos países, mas também entre os países. Tudo isso pode ser uma panela de pressão que pode explodir em circunstâncias de intensas crises.

Vamos fazer um rápido exame de consciência. Como você reagiria ao conviver com a penúria e a privação em todos os sentidos? Se presenciasse a morte de crianças devido a miséria e a fome? E tudo isso simplesmente devido ao seu país não ter nenhum atrativo econômico, como é o caso de muitos países africanos, ou ser tão abundante de riquezas naturais que faz com que os interesses de uma minoria cause um estado de exploração extrema.

Não precisamos ir tão longe. Como julgar as ações de uma classe excluída se palavras como educação, boas maneiras, democracia, não possuem qualquer significado? Essas palavras vazias vão alimentar seus filhos?

Eu lembro-me bem de um pronunciamento de alguns pesquisadores que tiveram suas plantações de transgênicos destruída por ativistas. Eles diziam que era uma calamidade pois anos de pesquisas foram perdidos e que a capacidade de gerar riquezas do país seria prejudicada. Sim, mas o que essas sementes têm a ver comigo? Essa tal riqueza chega até a mim? Estas são questões que estão na mente destes ativistas. Chega-se um momento em que não é possível mais sofrer tantas privações enquanto gastam fortunas em pesquisas que não beneficiarão senão a camada mais bem provida da sociedade.

Não estou com isso legitimando as ações violentas, mas propondo que não sejam tratadas com mais violência, que sejam vistas como reações a uma determinada situação. Entendê-las talvez seja o melhor caminho para resolver as diferenças.

Portanto, a ação de V não é um ato terrorista mas uma reação a um estado de coisas de terrível aspecto e consequências a todo um povo. Seu ato foi de extrema coragem e ousadia ao mesmo tempo que criou uma oportunidade rara das pessoas reconstruírem uma sociedade mais justa.

Considerações finais

Eu vejo “V de Vingança” como uma caricatura da realidade. Todos nós sabemos que os caricaturistas supervalorizam aspectos singulares fazendo-os se sobressaírem exageradamente no todo.

Contudo, talvez a trama apresentada no filme seja uma representação exagerada de outras formas de dominação das quais estamos submetidos sem perceber. O filme nos chama a atenção pra isso e também que esforços, muitas vezes dolorosos, sejam necessários para se libertar de qualquer estado de opressão.

Qualquer forma de controle é uma agressão a nossa capacidade criativa e inventiva.

Até a próxima!

sexta-feira, dezembro 22, 2006

O cínico Diógenes e o filme "Clube da luta"

"Clube da Luta" foi lançado em 1999 e é dirigido por David Fincher, mesmo diretor de "O quarto em pânico", "Vidas em jogo", "Os sete crimes capitais" e "Alien 3". Seu roteiro é baseado no romance homônimo de Chuck Palahniuk.

Este é um filme em que, diga-se de passagem, trabalha um ator talentoso chamado Brad Pitt, e não a “mercadoria de prateleira" de nome Brad Pitt que acostumamos ver em seus trabalhos mais recentes.

Eu resolvi escrever sobre esta obra cinematográfica pois acredito que ela pode ser muito mal interpretada e, dessa forma, aproveito também para algumas coisas que me incomodam na nossa atual sociedade.

"Clube da Luta" é quase sempre visto como uma crítica a sociedade consumista utilizando para isto um roteiro pesado, com cenas de violência, desajustes psicológicos e sexo de mal gosto. Há quem diga que o filme faz uma certa apologia ao terrorismo.


Eu rebato com veemência esta visão distorcida através de dois argumentos simples: primeiro, o cinema é uma arte e como arte deve ser visto e, segundo, nossa cultura nos impulsiona a cometer o péssimo hábito de encarar as coisas tal como nos convém.


Atualmente a indústria cinematográfica ex
plora o cinema muito mais como produto de entretenimento do que como manifestação estética. Entretanto, não se pode tomar este primeiro aspecto a ponto de canonizá-lo como um critério para classificar filmes como bons ou ruins. Nem todas as obras são criadas como "produto de diversão". Há também trabalhos que visam levar ao público uma visão de mundo de forma reflexiva, cujo estilo muitas vezes foge do convencional exigindo uma certa sensibilidade para compreendê-lo.

José Ortega y Gasset afirma, em seu texto sobre a desumanização da arte, que o ponto de vista sobre qualquer coisa é uma mera questão de ótica. Seria algo como visualizar um jardim através de uma vidraça. Nós podemos tanto focar o jardim e ignorar o vidro como também o contrário. Porém, quando se trata de uma obra de arte, a questão se torna mais complexa. Tomando "Clube da Luta" como exemplo, se centrarmos nossa atenção nas cenas violentas, no sangue, nos palavrões, no sexo animal, etc, não estamos visualizando a arte, mas sim os personagens tal como seres humanos em um contexto que, embora se trate de uma ficção, esteja retratando uma certa realidade. Isto é um erro, pois assim a mensagem do cineasta se perde e a obra é taxada de forma inadequada.


A obra de arte, neste caso "Clube da Luta", precisa ser desumanizada. As cenas violentas não são coisas concretas, mas sim, sobretudo, formas de expressão que podem ou não estar próximas de uma determinada realidade.

Um outro ponto importante é a cultura da conveniência que faz com que as pessoas rejeitem manifestações que afrontam uma visão de mundo romântica. Trata-se de um comportamento que busca a alienação porque tal estado as coloca em uma posição cômoda e confortável. Esses indivíduos evitam os problemas e fazem questão de não querer saber deles ou encará-los de frente.

Embora o tema violência enquanto problema social não seja o foco do filme, eu acho que vale citar que é inútil ignorar que a violência esteja presente em todas as sociedades. Não adianta fazer de conta que a brutalidade também faz parte da natureza humana.

Enquanto muitos fazem isso, este problema age como cupins no interior de uma grande mansão. Ao passo que todos permanecem admirando o suntuoso edifício, os insetos tratam de devora-lo por dentro até que atinjam a superfície e façam com que as pessoas se dêem conta que o abrigo estava oco, doente, e pior, que não fizeram nada enquanto ainda podiam.

É fácil observar que a grande maioria das pessoas projetam suas realidades particulares como se fossem as realidades de todos, contemplando, assim, um mundo perfeito e justo. Elas se mantém distantes dos problemas que assolam a humanidade e da noção real da natureza humana. Com isso, não é de se admirar que se chega o momento que o verniz se desgasta e os males que outrora eram ignorados passam consumir aqueles que o ignoraram.


Não adianta também admirar os romances de Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, lordes ingleses e plebéias, e repudiar retratos que mostrem também outros lados dos relacionamentos humanos que não são tão coloridos, que colocam abertamente que as pessoas também mentem, trapaceiam, machucam, matam, fazem sexo como animais, etc.


Em resumo, eu vejo que normalmente "Clube da Luta" é rejeitado injustamente por dois motivos: as pessoas centram o foco no aspecto da violência, deixando se perder a mensagem do filme, ao mesmo tempo que repudiam o fato de a obra constatar que somos humanos e não anjos, príncipes ou princesas da terra do nunca, considerando ainda que o faz demonstrando que isso tudo não é ruim, que é possível alcançar a sabedoria e o conhecimento nestas circunstâncias.


Tyler Durden e o filósofo grego Diógenes


O narrador do filme (Edward No
rton) trabalha como investigador de seguros e considera-se "escravo do consumismo instintivo caseiro". Tudo que ele via nos catálogos tinha que comprar, tais como "uma mesinha de café formato yin-yang, conjunto de escritório Klipsk, bicicleta ergométrica Hovetrekke, sofá Ohamshab, abajur Ryslampa de papel biodegradável", etc. Ele chegava a se perguntar que "tipo de porcelana o definia como pessoa".

Seguiu sua vida entre o trabalho e as terapias que fazia para curar seu problema de insônia até que conheceu, em uma viagem de avião, o vendedor de sabão Tyler Durden (Brad Pitt).


Daí por diante sua vida mudou drasticamente. Logo de início, Tyler demonstrou que via a realidade social tal como um camisa de força, repleta de simulacros, que se apresenta em uma seqüência encaixada e linear, com o fim de tornar as pessoas obcecadas por um estilo de vida.

Tyler, então, convida o narrador a livrar-se da auto-exigência de ser completo, perfeito, ou seja, de responder as tiranias de uma sociedade meritocrática, pois, no final das contas, as coisas que nós possuímos acabam por nos possuir uma vez que fazem-nos sempre querer mais do que o necessário em um círculo interminável.

Contudo, Tyler leva o narrador
para morar consigo em uma casa que estava prestes a ser demolida, com as janelas tapadas, sem tranca nas portas, com suas escadas de acesso aos cômodos superiores comprometidas, prestes a desabar. As lâmpadas da casa não funcionavam direito e a água encanada era barrenta sendo praticamente imprópria para qualquer tipo de uso. Quando chovia eles tinham que desligar a energia elétrica para evitar curto-circuitos e incêndios. Não possuíam TV nem geladeira. Para Tyler, era necessário esse desapego as coisas materiais e a uma determinada ordem social para que pudessem se libertar definitivamente da máscara social que fora forjada em seus rostos.

Particularmente, eu considero este comportamento parecido com o qual era defendido pelo grego Diógenes no século IV ou V a.C. Esse filósofo foi o maior expoente do cinismo, corrente filosófica da era helenística que desprezava qualquer tipo de prazer, paixões e vínculos sociais. Diógenes entendia a sabedoria como uma recusa da vida comum e andava pela cidade de Atenas tal como um mendigo, pregando o ascetismo, o retorno a vida natural, o abandono de atividades intelectuais e o desprezo pela comodidade. Ele morava em um barril e fazia suas necessidades fisiológicas em público.

A mais célebre frase deste pensador é: "procuro o homem". Ele a proferia andando pela cidade com uma lanterna acesa em plena luz do dia. Trata-se de uma inteligente ironia e significa a procura, a busca pelo homem que sabe ser feliz, vivendo de acordo com a sua mais pura essência, deixando para trás qualquer tipo de exterioridade e convenção social. Esse pensamento revela também o aspecto de que tudo o que é necessário para alcançar a felicidade está ao alcance de todos, sem exceção.

Há um relato sobre Diógenes em que certa vez ele avistara um rato correndo de um lado para o outro sem qualquer objetivo. Diante desta cena, o filósofo então diz que o animal é quem dita o modo de viver do cínico: uma vida sem objetivo, ou ao menos sem as metas que a sociedade propõe como necessária, sem moradia e sem as comodidades oferecidas pelo progresso.

Para os cínicos, este modo de viver representa a liberdade pois quanto menos necessidades supérfluas se possui, mais se é livre. Além de amolecer o físico e o espírito, os prazeres fazem com que o homem se torne escravo das coisas e dos costumes.


De um modo geral, a denúncia cínica aponta como ilusão a busca da felicidade através dos prazeres, riqueza, poder, fama, brilho e sucesso.


Contrariando o costume corrente de valorizar a cultura grega ao extremo, Diógenes afirmara que ele era um cidadão do mundo. Trata-se de uma afirmação bastante coerente com o seu pensamento tendo em vista que as cidades, fronteiras, legislações, etc, seriam formas de controle e, portanto, uma agreção a natureza humana. Eis aqui o prelúdio do anarquismo, uma idéia que já passou por muitas turbulências mas que se torna relativamente possível no mundo globalizado da atual era da informação. Em outra oportunidade, discutiremos sobre isso!


Diógenes então dedica especial atenção ao corpo pois considera que é imperativo conseguir temperar o exercício físico e a fadiga e assim poder renegar aos prazeres desnecessários a natureza do corpo humano. Com base nesta teoria, é possível entender o comportamento de Tyler que aprecia a luta corporal para testar e, ao mesmo tempo, desenvolver os limites do seu físico, libertando-se progressivamente dos desejos pelas comodidades próprias da vida em sociedade. E não é só isso. Tyler também torna a luta um tipo de terapia para a cura de problemas emocionais e psicológicos. Com isso cria o Clube da Luta que era constituído por um grupo de pessoas que lutavam entre si para resolver seus problemas e frustrações.


Tyler parece ser a própria encarnação de Diógenes pois ambos apresentam atitudes análogas. O filósofo, por exemplo, fazia questão de chocar as pessoas com seus hábitos excêntricos. Alguns dizem que ele se masturbava nas praças públicas, na frente das pessoas. Era chamado de “Cão”, pois, certa vez, passando por uma festa teriam-lhe jogado ossos e sua atitude imediata foi urinar sobre esses restos jogados pela elite ateniense. Fez isso para demonstrar o quanto desprezava o status social e as coisas relacionadas a boa vida. O personagem do filme, também não fica atrás. O seu comportamento sexual não é nem um pouco convencional. Como é projetista de cinema, freqüentemente insere em filmes familiares, películas com cenas impróprias que foram cortadas de filmes para adultos. Faz isso apenas para indignar o público. Tyler até mesmo prepara os alimentos no restaurante em que trabalha com sua urina. Além disso, se diverte provocando as pessoas na rua e não faz nenhuma questão de ter a aprovação das mesmas.

Considerações finais

Seja intencionalmente ou não, "Clube da Luta" apresenta de forma muito interessante a filosofia cínica. No entanto, como esses conceitos podem ser importantes para nós?

O primeiro aspecto é sobre o que é importante para se viver. Tyler demonstra que tudo se trata de uma questão de escolha e adaptação. Há muitos exemplos que podem ser comentados, mas um elemento que é muito discutido nos dias atuais é a tecnologia. Embora ela tenha proporcionado um bem estar substancial à humanidade, aumentando a expectativa de vida, melhorando as condições de tratamento de doenças, de alimentação, etc, é muito comum a postura em que se assume a não possibilidade de viver ou agir sem esta ferramenta.


Na área da educação, por exemplo, há muitos que de forma muito simplista, declaram que não se pode pensar em ensino e aprendizagem sem a consideração da tecnologia. Não há dúvida que as ferramentas tecnológicas sejam importantes mas há um certo exagero nesta afirmação.

Muitas coisas são possíveis sem a tecnologia. Afirmo ainda que, sem ela, talvez ocorra um desenvolvimento muito mais profícuo da criatividade e da inventividade. No cinema, por exemplo, antes da computação gráfica, era necessário um trabalho de engenhosidade admirável para criar os efeitos especiais.


Além disso, o filme ainda nos deixa um recado importante: não entregue sua vida as máquinas pois chega-se o momento em que ao invés de ela servir a você, é você que a servirá, pois, sem perceber, resumirá suas ações em atender a obsessão de manter ou fazer ascender o seu estilo de vida artificial promovido pela tecnologia.


Um segundo aspecto é o tão discutido tema do consumismo. Eu vejo um equívoco combatê-lo como se ele fosse uma doença, um câncer. O que na verdade é importante, é o consumo consciente, feito sem a hipnotização proporcionada pelo marketing e pelos meios de comunicação em massa. De igual modo, é fundamental não admitir a desigualdade social, o que uma grande maioria o faz por considerar ingenuamente que o sistema oferece oportunidades e que cada um tem aquilo que merece. O fato é que há uma grande parcela da humanidade que jamais teve a chance de merecer os regalos da classe média.

Tudo isso seria possível, diria o nosso grande Diógenes, através do conhecimento de nossas reais necessidades, da constatação de que muito do que temos não é necessário, mas sim, apenas possível e, portanto, supérfluo.


O terceiro aspecto tratado no filme
, e de igual importância, é sobre o que é necessário para ser feliz, um assunto que também foi muito bem discutido no filme "A vida de David Gale".

De uma forma geral, em uma sociedade consumista, é comum a visão de que a aquisição de bens e o sucesso profissional sejam sinônimos de felicidade.


Sobre esta importante questão eu gostaria de pegar carona no pensamento de Lacan, um dos grandes estudiosos de Freud, que dizia que a "fantasia é a verdadeira sustentação do desejo", ou seja, depois que conquistamos algo que desejávamos arduamente como objeto necessário a nossa felicidade, nós tendemos a minimizá-lo em termos de importância.


É neste sentido que há o ditado "cuidado com o que deseja", não porque conseguirá de fato conquistá-lo, mas porque quando isto acontecer, talvez não o quererá mais.


Por isso eu acredito que a felicidade não é construída através dos títulos, das conquistas profissionais, de aquisições materiais, etc. Tudo isto é muito bom porém apenas produzem sensações agradáveis e momentâneas pois depois que as alcançamos sempre desejaremos mais.

Em “A vida de David Gale", um personagem afirma: “como dizia Lacan, viver de desejos não traz a felicidade. O verdadeiro significado de ser humano é a luta para viver por idéias e ideais, não medir a vida pelo que obtiveram em termos de desejos, mas pelos momentos de integridade, compaixão, racionalidade e até mesmo auto-sacrifício. Porque no final a única forma de medir o significado de nossas vidas é valorizando a vida dos outros”.

No final, "Clube da Luta" toma um rumo inesperado mas duas coisas me chamaram bastante a atenção. Tal como previa Tyler, quando o narrador atinge o “fim do poço” desvencilhando-se de seus apegos da vida material, ele encontra então a si mesmo e com isso consegue se libertar de seus problemas ou, ao menos, torna-se consciente deles e consegue dominá-los. Entretanto, ele se dá conta também que isto aconteceu tarde demais, pois teria participado de um plano para destruir os principais edifícios de um centro financeiro de uma grande cidade.

Sobre este aspecto eu não me arrisco a comentar muito pois eu acredito que é o fórum íntimo de cada um que deve julgar se o narrador fez a coisa certa ou não. Não considero seguro nem mesmo discutir a questão sob o ponto de vista ético pois este mesmo sistema econômico baseado no capital financeiro de propriedade privada é, por si só, anti-ético e obsceno tendo em vista as desigualdade sociais que provoca e a degradação ambiental que desencadeia.

Sobre este último tema em particular, também tratou o excelente filme “V de Vingança”. Quem sabe, não discutimos sobre este assunto na próxima vez?

terça-feira, julho 25, 2006

O embuste do merecimento nas grande empresas contemporâneas: comentários sobre o filme “Em boa companhia”

Embora tenha sido lançado em 2004 nos Estados Unidos, o filme “Em boa companhia”, de Paul Weitz - mesmo diretor de “American Pie” -, estreou no Brasil apenas em Julho de 2005. O ponto alto desta comédia romântica é a precisão com que o autor consegue retratar os diferentes aspectos comportamentais protagonizados, na vida real, por homens e mulheres de negócios, principalmente os que trabalham para grandes empresas, tanto no que toca o próprio cotidiano do mundo corporativo como também a vida pessoal e particular dessas pessoas.

Teddy K. (Malcolm McDowel) é apresentado como um executivo de grande sucesso, que dirige com talento e visão suas empresas. Encara a tecnologia da informação como importante ferramenta de gestão, que possibilita e viabiliza sua clara estratégia de atuação no mercado, isto é, a “promoção cruzada”. Por isso promove fusões, as vezes entre empresas de diferentes ramos, com o objetivo de que operem de forma sincronizada e alcancem os consumidores nas mais diferentes formas. Nas próprias palavras de Teddy K.:

- Sinergia. O que isso significa? Por que um negócio vai bem com ela e afunda sem ela neste novo oceano de megabytes, streaming vídeo e satélites?
- A cada dia, o mundo se torna mais complexo. E para sobreviver num mundo complexo precisam
os de vínculos complexos para interagir com ele.
- O que estamos construindo aqui? Uma empresa? Ou estamos construindo um novo país sem fronteiras nacionais? Uma nova democracia para o consumidor! Uma nova democracia com um novo eleitorado!
- Vídeos musicais em 24 horas em Kuala Lumpur. Computadores com peças fabricadas no Japão, Groenlândia, Idaho, Índia. Um anún
cio de refrigerante saindo simultaneamente em sete diferentes continentes. O Dalai Lama comendo seu Krispity Krunch (espécie de cereais) enquanto coloca preces na Internet ...


Teddy K. profere, neste pronunciamento, as formas claras de um jogo. Um jogo que é possível em uma sociedade de consumo, que possui no desenvolvimento tecnológico e no acúmulo de riquezas o sinônimo de progresso. Neste ambiente, a mente das pessoas são invadidas com uma quantidade de anúncios e informações que excede e muito suas capacidades de processamento, de reflexão.

Sob a falácia das mensagens de endeusamento do cliente, as empresas organizam as informações de modo que possam conduzir as pessoas em seus discernimentos e guiá-las até captarem concepções produzidas para perpetuar a lógica de mercado e satisfazer os interesses de lucratividade. Escondido sorrateiramente sob os pomposos e atraentes slogans bajuladores, tais como “trabalhamos para atender as necessidades de nossos clientes” ou “nosso objetivo é a satisfação de nossos clientes”, está todo um processo de criação de desejos e necessidades artificiais que acabam por estimular o consumo.

Neste mundo, a “lei de menor esforço” é a regra para qualquer empreendimento e, por isso, a leitura, a escrita, são desvalorizados por não promoverem economia de tempo e não corresponderem a um caminho fácil para o conhecimento. Assim, prevalecem como meios de comunicação em massa e como fonte de conhecimento a Internet, a televisão, o rádio, e qualquer outro recurso que provenha imagens e som.

Platão, como a maioria dos gregos, conhecia os manejos próprios das naus e baseado em um aspecto conhecido da navegação antiga, construiu uma analogia muito própria para o assunto em questão. Este filósofo afirmou que, no mar, é possível dois tipos de navegação: a “Primeira Navegação” ocorre quando os ventos estão favoráveis e, dessa forma, as velas constituem-se do o instrumento suficiente para movimentar o navio. No entanto, quando cessam os ventos, faz-se necessário o uso dos remos, caracterizando o procedimento conhecido como “Segunda Navegação”.

Platão considera a “Primeira Navegação” o processo semelhante com o qual usamos para obter o conhecimento através das sensações, ou seja, sem que para tanto seja necessário qualquer esforço. Neste contexto, a própria natureza, constituição física, biológica e psicológica se encarregam de absorver o conteúdo das mensagens, enquanto que a “Segunda Navegação” equivale-se a obtenção do conhecimento através da metafísica, isto é, operações exclusivamente mentais guiadas pelo raciocínio lógico, que neste caso, sim, demanda dedicação, disposição e concentração.

O mundo apresentado pelo filme, é um mundo que não admite a “Segunda Navegação” platônica. Todo conhecimento deve ser construído apenas por fontes de informação que estimulem as sensações através da imagem e dos sons. Além disso é um mundo que considera útil apenas as engenhocas que tornam possíveis a vida fácil e sem esforços.

O francês Auguste Comte, no século XIX, presenciando o processo de transformação de uma sociedade essencialmente rural para uma sociedade industrial, processo este provocado pela queda da aristocracia e da monarquia absolutista e a conseqüente ascensão da burguesia com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, profetizou que a sociedade cada vez mais descartaria as atividades exclusivamente mentais, especulativas, que objetivam apenas o conhecimento pelo conhecimento, sendo que ocupariam seus lugares apenas as operações observáveis e com fins exclusivamente imediatos e utilitários. Em sua obra "Discurso sobre o conjunto do positivismo", afirmara: "O universo deve ser estudado não por si mesmo, mas para o homem, ou melhor, para a humanidade". Com isso a ciência assumiria o papel de possibilitar "ordem e progresso" na sociedade. Como Comte estava sendo testemunha ocular do avanço dos domínios das idéias burguesas, o progresso para este pensador, significava, desenvolvimento tecnológico.

Mesmo passado mais de um século, o pensamento de Auguste Comte não poderia ser mais atual. No filme, Teddy K. faz da previsão de Comte, uma realidade, um jogo, sendo que seu valor, nesta sociedade, se encontra justamente na sua habilidade de lidar com as regras e criar um ambiente favorável as suas ações e aos seus objetivos. Teddy K. é um especulador financeiro que encara as empresas como objetos de investimento. Suas ações são guiadas pelo objetivo de valorizar suas aquisições para, em seguida, desfazer delas para, com isso, acumular riqueza. Tal como ocorre nas bolsas de valores, nos processos de compra e venda de ações.

Para valorizar as empresas que adquiriu, Teddy K. utiliza-se de práticas e políticas corporativas pelas quais se adaptam os funcionários. Estes possuem a ilusão de que, pelo trabalho e esforço, alcançarão posições mais privilegiadas. O status quo da sociedade contemporânea, baseado no trabalho remunerado, na concepção de que as relações de trabalho não podem ser senão entre empresa e empregado, acabam por conduzir as pessoas a encararem esta realidade sem que haja qualquer centelha de dúvida ou desconfiança sobre sua lógica.

Karl Marx, no século XIX, quando analisando a sociedade industrial e criou a sua teoria do “mais-valia”, não imaginou, provavelmente, que ela atingiria uma dimensão tão extensa e que se tornaria uma realidade absoluta em nossos dias. "Mais-valia" é o termo, na filosofia marxiana, que designa o excedente produzido por cada trabalhador, ou seja, o que consiste no lucro do empregador. Nesta época talvez, 40% do tempo trabalhado de cada funcionário já seria suficiente para pagar a matéria-prima e todas as demais despesas da sua produção, bem como o seu salário. Nos dias atuais, com o aprimoramento cada vez maior da tecnologia, das técnicas de gestão, de administração e de produção, provavelmente esta taxa tenha caído para não mais do que 5% das horas trabalhadas.

Trata-se de um estado de exploração que permite ao empregador estabelecer um perímetro do qual pode se deslocar o trabalhador. O caminho pelo qual trilha todos os profissionais dentro desta margem determinada é o que se pode chamar de “carreira” e que, como pode-se observar, é altamente controlada, sendo que por mais meteórica que ela seja, jamais vai avançar além dos limites que compete ao empregado, pois se avançar além desses fronteiras, o empregado deixa de ser empregado e passa ao lado dos notáveis manipuladores de fatores circunstanciais do mercado, algo que é extremamente raro de ocorrer.

Contudo, o trabalhador é alimentado de falsas ilusões pois recebe, como salário, um valor que está muito aquém do que produziu. Além disso, é chamado a produzir cada vez mais, através da sua ambição ao almejar cargos e através de procedimentos, símbolos e mensagens que se apresentam como recursos motivadores ao seu fraco discernimento, quando na verdade são mensagens desprovidas de qualquer substância.

Como exemplo, pode ser observado o discurso de Teddy K. que compara a sua empresa a “um novo país sem fronteiras”, uma nova democracia global interligada por recursos tecnológicos e pela Internet. Trata-se de uma mensagem de apelo bastante forte e que certamente funciona como o "canto da sereia" para mentes incautas que vêm-se encantadas pelo palavrório que articula as possibilidades evidentes da tecnologia, o mundo de facilidades almejado por todos e, de forma subscrita, a obsessão pelo lucro, que nesta altura, é vista pelas pessoas como algo natural e inquestionável.

Um outro exemplo, é o episódio em que o jovem carreirista Carter Duryea (Topher Grace), em uma reunião de trabalho, utiliza de recursos de apelo emocional para motivar sua equipe de vendedores chegando até a interpelar uma pessoa responsável pela manutenção. Qual valor estratégico pode existir no trabalho de manutenção predial para uma empresa obcecada pelo lucro? É obvio que a atitude de Carter não passa de um joguete para impressionar e motivar os funcionários a trabalharem conforme desejam a direção e os acionistas. O pobre Hector, da manutenção, é vulnerável por possuir um cargo mais simples dos presentes e por isso, Carter, com pouco esforço, consegue fazê-lo se sentir valorizado provocando-o a uma reação intempestiva de excitação o que contagia todos os demais presentes.

Carter Duryea é um carreirista pois sua ambição é tamanha que não consegue ver seu trabalho senão como um trampolim para cargos mais altos. Como produz resultados, passa por um treinamento que é oferecido pela empresa para todos os que assumem cargos de gerência. Esta é uma prática comum nas empresas, ou seja, eventos tais como treinamentos, encontros, reuniões que são reservados a poucos notáveis que muito trabalharam e produziram para fazerem por merecer. Algo curioso que ocorre no filme, talvez como forma de ironizar este procedimento administrativo, é o momento em que a esposa de Carter questiona-se se o significado de "ser treinado pela empresa" não seria algo como ser tratado tal como um chimpanzé.

Sua sensação de sucesso é tão forte que acaba se apaixonando pelo seu trabalho a ponto de deixar que ele extrapole os limites do razoável e invada a sua vida pessoal. Por isso, trabalhou até mesmo na sua lua-de-mel, deixava sempre muito tarde o escritório, não prestava atenção nos anseios da sua mulher. Até mesmo ao conversar com ela utilizava seus recursos retóricos de venda, como bom vendedor que era, além de viver sempre isolado pois não conseguia cultivar amizades, tendo em vista que as relações profissionais são sempre impessoais. Carter, definitivamente não conseguia separar seus papéis sociais de profissional, amigo, esposo, etc.

Dan Foreman (Dennis Quaid), é o oposto de Carter, possui uma família bem estruturada, protege as filhas e não mede esforços para garantir a educação delas. Mesmo tendo acabado de ser notificado sobre o seu rebaixamento de cargo e em meio as indefinições devido ao processo de fusão que a sua empresa estava passando, Dan não deixou de atender a um pedido da sua filha de jogar tênis. Este fato demonstra a sua preocupação de estar presente no seio da sua família e dedicar-lhe atenção. Suas palavras, ditas para Teddy K., demonstram, com perfeição, a forma como posiciona-se no mundo:

- Não sei se entendo a forma como o mundo está mudando ou vai mudar nosso modo de conduzir os negócios. Nós ainda vendemos um produto, não? Que esperamos que alguém precise.
- Somos seres humanos, com outros seres humanos como clientes.
- Não vejo como esta empresa é como seu próprio país. O fato de vendermos coisas não significa que devemos agir conforme nossas próprias leis. Além disso, os países, pelos menos os democráticos, têm certas obrigações com seus cidadãos, não têm?
- Como se encaixam nisso as demissões e a obsessão do lucro?


Dan acaba por tocar em questões éticas ao afirmar que a empresa não deve criar suas próprias leis, ou seja, manipular as circunstâncias a seu favor. Ao menos, ele aponta a demagogia e a hipocrisia presentes na verborragia de Teddy K. ao perceber o antagonismo dos objetivos corporativos ao mesmo tempo tão nobres e também contraditoriamente indiferentes aos problemas humanos ao buscar o lucro obsessivamente, demitindo pessoas e restruturando procedimentos incessantemente. Contudo, Dan Foreman, é o profissional que trabalha não por cargos, mas porque possui nele uma forma de desenvolver relações sociais e se recriar progressivamente.

O grande feito de Paul Weitz neste filme, sem dúvida, foi sua capacidade de retratar a vida cotidiana em um país capitalista. Mesmo assim, esta produção ainda não chegou a mencionar os efeitos da burocracia adminstrativa, chamada por Max Weber de "jaula de ferro", que se estabelece na sociedade, além dos problemas globais decorrentes da obsessão pelo lucro, dentre as quais pode-se considerar a desigualdade social dentro dos países e entre os países, os problemas ambientais, a violência, a miséria, dentre outros. A solução desses males nem sempre trazem benefícios políticos e econômicos e talvez é por isso que existem. São por estes fatos que a educação contemporânea precisa rever com cuidado suas ações pedagógicas. Muitas vezes, a educação não passa de um treinamento, de um adestramento para a formação de futuros carreiristas, de fantoches, totalmente alheios aos problemas que assolam a humanidade.